Tisnados pelo sol de Rodes que não cessara de brilhar naquele Verão quente durante o mês da sua pousada, Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva, com as barbas já um tanto crescidas, trajando vestes mouras bem cuidadas e transportando uma honesta carga de mel não se diferenciavam em nada de outros abastados mercadores que iam fazer os seus tratos à bela e próspera cidade de Alexandria, sita no Egipto dos sultãos Mameluks com a sua corte no Cairo.
O capitão Paredes fazia viagens frequentes entre Barcelona e Alexandria e veio buscá-los na data aprazada à ilha de Rodes, admirando muito o seu disfarce:
– Pareceis dois mouros, sem tirar nem pôr! Serieis capazes de enganar o próprio Maomé!
– Sem dúvida – acrescentou Frei Fernando –, mas as barbas ainda terão de crescer um pouco mais pela altura do peito, se quiserem passar despercebidos na Pérsia e reinos afins.
– Enquanto estivermos em Alexandria e na viagem até ao Cairo, elas acabarão de crescer – lembrou, sorrindo, Pêro da Covilhã.
– A vossa carga de mel já está na nau do Capitão Paredes – veio dizer Frei Gonçalo. – Podeis embarcar quando quiserdes. Ide com a graça de Deus.
– Muito vos agradecemos, senhores Cavaleiros, a vossa generosa hospitalidade e todo o socorro prestado – e Afonso de Paiva abraçou os hospitalários portugueses com sincera emoção.
– Gostámos de vos ter por cá, já tínhamos saudades de ver gente da nossa terra – concluiu Frei Fernando. – Tende cuidado e que Deus vos acompanhe!
– Obrigado, senhores Cavaleiros – e Pêro da Covilhã abraçou-os por sua vez, dirigindo-se em seguida com Afonso de Paiva e Bartolomeu Paredes para o cais, a fim de embarcarem na nau prestes para partir em direcção às terras dos muçulmanos, onde os dois escudeiros portugueses dariam início à sua aventura.
O navio, de velas desfraldadas, aproveitava uma rara brisa de Verão para atravessar o Mediterrâneo de águas muito azuis e calmas como um lago. Era, todavia, um mar tranquilo apenas na aparência, pois estava infestado de navios corsários, não só de turcos e de mouros como Selim Khaldun, mas também de cristãos de muitas nações que não perdiam ocasião de abordar e pilhar qualquer barco de uma cidade ou estado rivais.
Pêro da Covilhã, encostado à amurada, pensava com melancolia em Fez, na formosa Filipa cujo sacrifício fizera dela uma personagem de lenda e canção para a imaginação de dois povos inimigos. Suspirou de mágoa.
– Em que pensas, homem? – perguntou Afonso de Paiva aproximando-se dele com o Capitão e dando-lhe uma palmada amigável nas costas.
– Em piratas e donzelas orgulhosas – respondeu sorrindo.
– Quanto a piratas, passo bem sem eles – falou o Capitão Paredes com uma careta de desprezo –, mas de donzelas orgulhosas não me queixo, se me quiserdes contar alguma história saborosa.
– É uma história admirável, mas mui dolorosa...
– Falas de Dona Filipa de Menezes, não é verdade? – perguntou Afonso de Paiva que ouvira contar, na corte, a espantosa aventura do companheiro e dos cativos portugueses de Fez.
– Não pude salvar a pobre menina...
– Todos os cativos disseram a el-Rei que não podias ter feito mais do que fizeste. Salvaste-os a todos e trouxeste-os a bom porto. Porque te atormentas, homem de Deus?
– Se não vos anojar demasiado essa relembrança, Pêro da Covilhã, muito me aprazaria ouvir essa história que nos tornaria mais breve a viagem.
O Escudeiro, desejoso de aliviar o fardo que lhe trazia pesado o coração, começou a contar a sua missão na Berberia, a perseguição do espião Habeeb el-Majdoubi e o triste caso de Filipa de Almeida e Menezes.
...
A galeota aparelhada com uma só árvore[62] e vela latina, movia-se a remos com grande ligeireza em direcção à nau de Bartolomeu Paredes. Nenhum outro barco se avistava no horizonte, nem tão pouco qualquer contorno de costa ou monte longínquo, apenas uma linha entre dois espaços azuis, pálido o do céu e intenso o do mar.
– Isto cheira-me a embuste – disse o Capitão preocupado. – Não trazem insígnias nem pendão e há pouca gente no convés, mas os remos movem-se com ritmo e em força, por isso está bem equipada. Pelo sim, pelo não, pus os meus homens em alerta.
– Estamos entre águas mouras e turcas – concordou Pêro da Covilhã – e esta região, segundo me disseram os Cavaleiros de Rodes, está infestada de corsários.
– É uma galeota pequena e rápida, muito usada no corso e esta nau tão pesada não lhe pode fugir. Se nos atacar, teremos de nos defender.
– Se pensam que somos uns mercadores indefesos – disse Afonso de Paiva – terão uma grande surpresa quando nos virem lutar.
– Todos os meus homens são livres e leais, os quatro cativos que tinha já há muito foram libertados e quiseram continuar comigo. Ando no mar há doze anos e até hoje ainda não perdi um navio. Só não desejo encontrar o Selim Khaldun da vossa história – acrescentou o capitão gracejando.
A galeota emparelhou com a nau, a barlavento[63] e ergueu os remos na posição de descanso, numa saudação. Aparentava ser um navio de mercadores mouros, com carga e passageiros como qualquer outra, mas a atitude dos homens no convés, em posições estratégicas e sobretudo o seu capitão, que mais parecia um comandante de armada, não agoiravam nada de bom.
Pêro da Covilhã ouviu distintamente o grito do corsário, dito numa aravia da região do al-Maghrib que conhecia na perfeição:
– São frangues[64]! Ao ataque!
Os remos caíram na água e a galeota moveu-se contra a nau, abalroando-a. Bartolomeu Paredes bradou para os seus homens:
– Cossairos[65]! Aos vossos postos!
Os homens acorreram ao convés e Covilhã admirou a prontidão da chusma[66] a saltar pela escotilha, armada de lanças, espadas e sabres para tomar posições de combate por todo o navio, com os besteiros e archeiros subindo pelos cabos e enxárcias até ao cesto da gávea, para daí poderem disparar os seus arcos e bestas com mais vantagem.
A galeota deixou-se descair sobre a nau, igualando as proas pela banda de estibordo[67]:
– Lançar arpéus! – ordenou o capitão dos assaltantes.
Com um silvo e um baque sinistro, dois arpões ligados a cadeias de ferro muito compridas voaram da galeota por sobre o fosso de mar entre os navios e cravaram-se como dentes famintos na bordadura da nau, a que os piratas se atracaram. Imediatamente saíram debaixo da tolda, onde até então se haviam mantido escondidos, cerca de cinquenta mouros com alguns turcos à mistura e, dando um grande grito, lançaram uma saraivada de pedras, zargunchos e chuças, as curtas lanças de arremesso a que os cristãos responderam com igual descarga.
– À abordagem! Ao ataque! – ordenou o capitão corsário lançando-se suspenso de um cabo por sobre as cabeças dos seus homens e deixando-se cair no convés inimigo, com o sabre nu na mão.
– Ao assalto! – gritaram os piratas. – Com Selim Khaldun!
E seguiram o exemplo do chefe, agarrando-se aos longos cabos e voando do mastro e mastaréus da galeota, quais saltimbancos de feira, abatendo-se na nau como uma praga de gafanhotos.
“Selim Khaldun! Maldito sejas!” Pêro da Covilhã sentiu o coração encher-se-lhe de ódio e, por instantes, julgou ter ouvido mal e não ser esse nome danado que os salteadores berravam como senha. Porém, o capitão pirata tirou-lhe as dúvidas, mal se pôs de pé no castelo da popa, bradando bem alto para os homens de Bartolomeu Paredes:
– Sou Selim Khaldun, o Corsário. Frangues, escolhei: rendição ou morte?
– Cativos de piratas mouros, nunca! – gritou-lhe em aravia o capitão Paredes, erguendo a espada num sinal para os seus matalotes[68] e mercenários: – A eles, meus bravos! Atirai-os ao mar.
E correu para a popa, seguido por um grupo dos seus homens, envolvendo-se num terrível corpo-a-corpo com os assaltantes que subiam pela amurada e saltavam para dentro da nau, rechaçando-os com valentia e atirando-os de novo para a galeota ou para o mar, feridos de morte.
Do cesto da gávea, mais protegidos, os quatro atiradores disparavam os arcos e as bestas sobre os piratas, apanhando-os ainda em voo, suspensos dos cabos, de onde se soltavam feridos, vindo estatelar-se com estrondo no convés ou despenhar-se nas águas que se cerravam sobre os seus corpos pesados de roupas e couraças.
Afonso de Paiva tomou o comando de um grupo de dez remadores de Barcelona, acorrendo à proa para tentar soltar os arpéus e libertar a nau da prisão da galeota, mas os ferros eram fortíssimos e os corsários que por ali entravam não lhes davam repouso. Ao terçarem armas, os mouros repetiram:
– Morte aos Frangues! Por Khaldun, nosso Chefe.
Todavia, Afonso de Paiva dava tão forte neles com a ajuda da chusma catalã, que os mouros começaram a enfraquecer e a retirar-se em desordem para os chapitéus da proa, para aí se defenderem, mas um terceiro grupo de mercenários fez-lhes frente e, assim cercados, tratavam de vender cara a vida.
Os mortos e feridos acumulavam-se na nau e nenhum dos grupos podia ter a ilusão da vitória, embora o maior número fosse, à partida, uma vantagem para assaltantes. Dois dos archeiros da gávea jaziam no solo trespassados pelas setas dos piratas que os haviam imitado, subindo ao mastro da galeota para desferir os arcos contra os defensores do barco cristão.
Pêro da Covilhã avançou para a popa, procurando Selim Khaldun que, debruçado no varandim do castelo[69], vestido com uma casaca carmesim franjada de oiro, por certo roubada a algum fidalgo português, brandindo no ar a cimitarra, dava as suas ordens cheio de arrogância e seguro da vitória.
– Khaldun, perro maldito, violador de mulheres! – desafiou o Português. – Não te escondas atrás dos teus cães de fila, negro capado! Anda lutar como um homem!
O Escudeiro de D. João II recusara escudo, rodela ou adarga[70] e mostrava-se de peito descoberto, com a espada numa mão e um punhal de lâmina longa na outra. O mouro olhou-o com desprezo, mas num salto ágil por cima do varandim do castelo passou para a tolda do navio, acercando-se do atrevido mercador que ousava desafiá-lo de armas em punho.
– Vens rogar-me pela tua vida, miserável traficante? Não vejo peças de seda, nem cofres de moedas nas tuas mãos! – bradou o corsário, com ironia e de modo a fazer-se ouvir no tumulto da batalha.
– Venho pagar-te com ferro e não com ouro, uma dívida antiga, negro monturo. Vou fazer-te beijar o meu bragado, eunuco de harém, filho de moura barregã! – e Pêro da Covilhã arremeteu contra o árabe, desferindo-lhe um terrível golpe, aparado no último instante por Khaldun, graças à grande perícia de espadachim adquirida nos muitos anos de corso.
– Lah hilah! Pelas barbas do Profeta! – exclamou, com surpresa, saltando para trás. – Usas melhor da espada que da vara de medir sedas, perro infiel! Mas não tenho tempo para ti.
Era um mouro na força da idade, ágil e destemido, um competidor temível. Deslocou-se com um movimento circular, em torno do adversário, medindo-o com o olhar, avaliando as suas reacções. De súbito, a lâmina curva da cimitarra volteou no ar e abateu-se sobre a cabeça do falso mercador, porém a espada e o punhal cruzaram-se ao alto para receber a estocada. Os ferros retiniram num lampejo de prata e os dois homens, com os corpos quase a tocarem-se, sentiram a respiração ofegante do outro e puderam mirar-se nos olhos do inimigo.
– Tu não és mercador! Combates e odeias como um Cruzado cristão!
Um punhal surgiu na mão esquerda do corsário e Pêro da Covilhã mal teve tempo de o empurrar para trás, não logrando evitar, todavia, um rasgão profundo na coxa.
– Allah é grande! – gritou o mouro cheio de alegria ao ver o sangue jorrar da ferida e o adversário a coxear. – Vais morrer, cristão!
Atacou de novo mas, no regozijo do triunfo, descurou a guarda e Pêro da Covilhã não deixou escapar a ocasião, vibrando-lhe uma tremenda cutilada no braço esquerdo que se separou do corpo e tombou no solo, ainda com o punhal apertado entre os dedos.
O berro de dor e raiva do Corsário e o sangue a esguichar em profusão do coto fez acudir alguns dos seus homens que, já muito desbaratados, procuravam volver à galeota para se porem em fuga. Mantendo o Escudeiro em respeito, os mouros arrastaram Selim Khaldun até à amurada, procurando estancar-lhe o sangue e, agrupando-se à sua volta para o proteger, passaram-no para a galeota seguindo-o sem demora.
Foi o sinal para a debandada geral dos corsários, perseguidos pela tripulação da nau numa grande surriada.
– Lançai-lhes umas panelas de pólvora – bradou Bartolomeu Paredes – a ver se vão a arder para o inferno!
O movimento dos remos na galeota era descompassado, embaraçando-se uns nos outros, impedindo-a de se afastar da nau com a pressa necessária para se pôr a salvo, antes que uma meia dúzia de panelas de pólvora atiradas com perícia lhe explodisse no convés com terrível fragor, arrancando-lhe o mastro e incendiando o madeirame e as velas.
– Esta já não volta a atacar cristãos – disse o Capitão Paredes a Pêro da Covilhã, vendo as chamas consumirem o barco e o desespero dos piratas a alijarem dois batéis ao mar para salvar as vidas. – Tenho de pôr a bordo uma bombarda ou pelo menos alguns falcões[71] para me defender melhor das abordagens destes corsários.
O Escudeiro acercara-se da amurada para lançar fora o braço ensanguentado do pirata, não sem antes lhe retirar dos dedos dois preciosos anéis que entregou a Paredes.
– Valiosos trofeus – disse o capitão. – Guardai-os como recordação deste dia. Graças à vossa bravura, Senhor Escudeiro, o combate terminou mais cedo e a nosso favor. Ide tratar da vossa ferida, o meu barbeiro é um homem de muito saber.
– Não logrei matá-lo – disse o português com fúria contida. – Falhei de novo o meu dever.
– Não creio que sobreviva a um tal ferimento – Afonso de Paiva tinha os olhos brilhantes do ardor da luta e não sofrera um só arranhão. – E, mesmo se escapar, a sua vida de corsário chegou ao fim e para ele isso há-de ser pior do que a morte.
– Isso é certo – concordou o capitão. – Agora, vou ver dos meus homens, pois preciso de contar os meus mortos e pensar os feridos para prosseguirmos viagem para Alexandria. Vinde comigo, Pêro da Covilhã, pois estais a perder muito sangue.
Afastaram-se e Afonso de Paiva ficou a olhar fascinado o fumo e as chamas que consumiam a galeota, enquanto murmurava:
– Selim Khaldun! Quem haveria de dizer?! O mundo dá cada volta!
...
A bela cidade de Alexandria, a El-Iskandariya dos mouros, era o porto de encontro do Ocidente, através do Mediterrâneo, com as rotas comerciais do Oriente, rasgadas no Oceano Índico e Mar Vermelho, para trocas de produtos como as especiarias da Índia, trazidas nas caravanas terrestres ou em navegação pelo mar Índico e Golfo Pérsico.
Fundada por volta do ano de 323 a. C. por Alexandre o Grande da Macedónia, depois de uma consulta ao oráculo de Amon em Siwa que o dera como faraó, Alexandria tornou-se com a dinastia ptolomaica num dos mais importantes centros artísticos, culturais e comerciais do mundo, até o Egipto ser conquistado pelos Romanos e convertido numa mera província do Império. A partir do Séc. XIII, os sultões Mamelucos, antigos escravos e mercenários circassianos, assaz tolerantes com os cristãos, abriram as fronteiras aos estrangeiros favorecendo o comércio com Venezianos e Florentinos, em especial Cosimo de Medici, por isso os Portugueses não eram os primeiros europeus a buscar tratos nestas terras de mouros.
À chegada, os dois escudeiros alojaram-se num caravanserai[72] perto do porto e procederam às formalidades do desembarque e armazenagem das suas mercadorias, lutando contra a demora e má vontade dos oficiais da aduana. Pêro da Covilhã já ali podia sentir o cheiro das especiarias e tudo parecia falar do oriente.
O seu ferimento tinha sarado bem e, enquanto esperavam pela veniaga[73], percorriam com Bartolomeu Paredes a cidade de El-Iskandariya, “a Noiva do Mar”, movimentada e cosmopolita, cheia de cor e de vida, rodeando a famosa mesquita construída pelos Fatimidas. O Capitão aguardava igualmente por uma carga e passageiros, com destino a Nápoles e Barcelona e queimava o tempo na agradável companhia dos escudeiros de quem se fizera amigo.
Admiraram sem reservas a imponente fortaleza de Quait-Bey a ser construída sobre as ruínas do Farol de Alexandria – uma das sete maravilhas do Mundo da Antiguidade –, o magnífico templo que Cleópatra mandara edificar como testemunho do seu amor pelo romano Marco António e as Catacumbas de Kom esh-Shuqafa onde se haviam refugiado os cristãos coptas durante o domínio árabe. Pêro da Covilhã não conseguia explicar a sua emoção ao contemplar aquelas obras antigas cujas pedras podiam contar histórias maravilhosas e sangrentas.
Na manhã do quarto dia vieram fazer as suas despedidas, no porto, ao valente Capitão:
– Ide com Deus, Bartolomeu Paredes – Pêro da Covilhã tinha lágrimas nos olhos quando o abraçou com muita amizade. – Jamais esquecerei o que fizestes por nós, meu bom e leal amigo. Podeis contar comigo para sempre.
– Calai-vos, Senhor Escudeiro, que esta foi a melhor e mais aventurosa viagem da minha vida! Não a trocaria por nada deste mundo. Mas, estais bem? Pareceis ter febre! O vosso ferimento piorou?
– Não, a ferida já só tem a cicatriz, mas na verdade sinto-me mareado e com as tripas soltas.
– E eu estou igual que tu! – afirmou Afonso de Paiva. – Passei toda a noite nas latrinas da pousada e hoje sinto a cabeça pesada e tremuras como sezões.
– Pode ser da água que é muito má e doentia – Bartolomeu Paredes sentiu medo por eles, mas não quis assustá-los. – Ide visitar um bom físico, sem mais tardança, aqui há-os famosos e conhecedores das febres do Nilo.
As águas do grande rio alimentavam a cidade mas gozavam da fama de causar maleitas aos forasteiros, umas febres tão fortes que muita gente acabava por morrer e o capitão lamentava não poder adiar a sua partida para assistir aos amigos em caso de necessidade. Os dois Escudeiros mal puderam sofrer o soltar das amarras e o lento deslizar da nau para fora do porto, pois nem já forças tinham de erguer o braço num aceno de despedida, tão destemperados se sentiam. Um suor viscoso escorria-lhes pela pele e colava-lhes a roupa aos corpos. Felizmente o caravanserai não estava longe e apressaram-se a recolher ao leito, meio desmaiados.
Foram quase dois meses de sezões, de uma febre abrasadora a devorá-los numa tremura de corpos e bater de dentes, deixando-os exaustos, sem forças para lutar pela vida. Ahmed Said, o zelador do caravanserai, receoso de os ver morrer no estabelecimento, fez conduzir os enfermos ao hospital, pois como mercadores estrangeiros em dificuldades podiam usufruir da Zaká, a esmola que todos os muçulmanos eram obrigados a dar e consistia no décimo dos seus ganhos ou colheitas, a fim do Estado poder prestar auxílio aos necessitados, aos escravos em busca de liberdade, aos viajantes e combatentes das guerras santas.
O Naibre[74] enviou um Cádi ao caravanserai para falar com o zelador e inquirir da sorte dos dois mercadores estrangeiros e ele partira em seguida para o hospital a fim de ver com os próprios olhos se estavam a ser bem cuidados e qual o seu estado de saúde.
– Os homens vão a morrer, meu Senhor – disse-lhe o físico de serviço. – Foram consumidos pelas febres e estão num tal estado de fraqueza que já não têm salvação possível.
– Sabeis de onde são?
– Não, meu senhor. Vinham vestidos como muçulmanos e o zelador disse-nos que falavam mui bem aravia, porém, durante o delírio, balbuciaram palavras em uma língua desconhecida, embora com semelhanças às dos Frangues.
– Não são então de França, Itália ou Grécia?
– Não, que essas línguas conheço eu.
– Podem ser muçulmanos, mas viverem no estrangeiro. Dizes que vão morrer?
– Sim, Cádi, não terão mais de dois ou três dias de vida.
O Cádi estava contente, pois poderia levar boas novas ao Governador. Um antigo uso mouro, feito lei com a passagem do tempo, permitia aos senhores da terra herdarem todos os bens dos mercadores que aí morressem sós, sem terem junto de si filhos ou irmãos. Por isso, mal o rumor da enfermidade dos dois homens chegou aos seus ouvidos, o Naibre mandara-o imediatamente investigar para, em caso de morte, vender a fazenda sem mais delongas.
– O físico diz que os mercadores doentes não duram mais de três dias – disse o Cádi ao zelador do caravanserai. – Por isso, podemos vender já as suas mercadorias e arrecadar o dinheiro para o Naibre.
Não eram mercadorias fabulosas, como sedas ou brocados, tratava-se apenas de uma carga de mel, todavia sendo um produto muito procurado, vendeu-se por assaz bom preço. O Cádi recebeu uma bela maquia, da qual soube tirar uma proveitosa percentagem para si próprio e uma gratificação para o zelador... para o calar.
Quanto aos mercadores, depois de morrerem, o hospital se encarregaria de os sepultar junto a outros sem família, com todos os encargos pagos pela Zaká.
...
Sentiam-se fracos como crianças de colo, mal se aguentando de pé. Regressavam lentamente ao mundo dos vivos, dando graças a Deus por não terem morrido em terras de infiéis sem direito a um enterro cristão. O hospital, os físicos e os cuidados recebidos foram melhores do que alguma vez poderiam ter tido em Portugal e Pêro da Covilhã, perante a curiosidade dos seus salvadores quanto à estranha língua por eles falada durante o delírio, contou-lhes uma longa e fantástica história, conseguindo convencê-los de que se chamavam Ali Moumen e Agi Bedreddin, eram muçulmanos de Fez e viviam há já muito tempo fora da sua terra.
– Quanto tempo estivemos enfermos?
– Quarenta dias – respondeu o físico –, mas segundo me disseram já há muito que jazíeis no caravanserai sem tratamento.
– Que perda de um tempo tão precioso! – lamentou Afonso de Paiva. – Já devíamos ter partido para El-Qahira[75].
– Temos de volver ao caravanserai quanto antes, para reaver o nosso fato – disse Pêro da Covilhã.
– Quando venderdes os vossos produtos, não vos olvideis da zaká – lembrou-lhes o físico, a rir. – Poderá ajudar outros desgraçados como vós a escapar da morte.
– Não o esqueceremos – prometeram os falsos mercadores solenemente. Era o mínimo que poderiam fazer para mostrar a sua gratidão e pagar a dívida a quem lhes tinha salvo a vida.
Quando ficaram sós, Pêro da Covilhã mostrou a sua preocupação:
– Estamos com algum atraso na viagem, embora ainda não seja grave. Porém, a partir de agora, não podemos perder tempo. Volvamos ao caravanserai, pois precisamos de dinheiro e logo trataremos da nossa mercadoria.
– Espero que o nosso fato e os baús não tenham levado sumiço – suspirou Afonso, sempre desconfiado.
– Suponho que não, pois a pousada tem um zelador e quando um ladrão é apanhado cortam-lhe a mão direita.
– Por certo isso deve desencorajar os ladrões, pois não vi um só maneta durante os dias que passeámos pela cidade.
O zelador Said ao vê-los entrar no albergue, magros, pálidos e com andar pouco seguro, olhou-os com espanto como se eles fossem fantasmas ou djinn:
– Por Allah e seu Profeta! Ali Moumen e Agi Bedreddin! Estais vivos!
– Sim, Ahmed Said, escapámos por pouco. Queremos recompensar-te por nos teres tratado nos primeiros dias e enviado para o hospital, mas para isso precisamos do nosso fato e das mercadorias.
– A vossa fazenda... Ninguém vos disse nada? O cádi do Naibre... – o homem estava quase tão pálido e trémulo como os dois convalescentes, sem saber como prosseguir: – Sentai-vos aí a tomar um refresco e logo vos porei a par do que se passou enquanto estivestes no hospital.
Pêro da Covilhã viu-o afastar-se cheio de nervosismo:
– Afonso, isto não me cheira! Qualquer cousa correu mal...
– Também me parece! O mouro está cheio de medo.
O zelador voltou com um criado para lhes servir sumos, tâmaras e frutos secos.
– Diz-nos, por caridade, que aconteceu?
Em poucas palavras o zelador contou como o ganancioso Cádi não havia esperado pela morte deles para lhes pilhar a fazenda e vender as mercadorias.
– E, agora, de que vamos viver? – perguntou Afonso de Paiva amargurado.
– Eu tinha um pequeno baú com papéis, ainda trago a chave ao pescoço. O Cádi também se apropriou dele?
– Não, Ali Moumen, eu escondi o cofre dos seus olhos cobiçosos e guardei-o para o entregar a alguém que viesse em tua busca para o dar à tua família. Aí o tens.
O zelador fez sinal ao criado e o pequeno baú forrado a couro negro foi posto sobre a mesa. Pêro da Covilhã abriu-o e viu a carta de crédito de D. João II, as suas notas, cartas de marear e mapas, assim como a bolsa de moedas de ouro. Ninguém havia tocado no conteúdo do cofre.
– Bem hajas, honrado Ahmed, espero reaver os meus bens para poder recompensar-te – disse-lhe o escudeiro, admirando a honestidade do mouro. – O Cádi tinha direito a fazer o que fez?
– Só se tivésseis morrido! Porém ele não quis esperar e cometeu um crime tremendo. Podeis queixar-vos ao muhtasib, o oficial de vigia aos tratos dos mercadores e ele há-de fazer com que as mercadorias vos sejam devolvidas ou pagas a um preço justo. Eu serei vossa testemunha.
O zelador estava contente consigo mesmo por ter resistido à tentação de abrir o cofre e ficar com o conteúdo para si, mas temera que algum parente dos mercadores viesse reclamar o fato dos seus familiares e o acusasse de ladrão. Agora a sua honradez iria ser recompensada não só no céu por Allah, mas também na terra pelos agradecidos estrangeiros.
...
Ao fim de quase um mês de intermináveis queixas e reclamações, com a justiça moura a arrastar-se numa lentidão de caracol, valeu-lhes a preciosa ajuda de Ahmed Said que atalhou caminhos, descobriu saídas e encontrou socorro, mediante o pagamento de peitas e gratificações, Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva viram finalmente os seus direitos respeitados e os produtos pagos ao preço reclamado. Podiam finalmente seguir viagem.
– Ahmed, meu bom amigo, precisamos de um homem desta região e da nossa confiança para ir connosco como guia. Não quererás, por acaso, acompanhar-nos a El-Qahira?
– Será uma honra para mim, Ali Moumen, viajar contigo e com Agi Bedreddin. Podeis contar comigo.
– Em mui boa hora! – disse com satisfação o falso Moumen. – Tratemos, então, da partida.
– Haveis mister de novas mercadorias, não é verdade?
– Sem dúvida – concordou Afonso. – Agora já temos dinheiro e posso tratar delas no mercado de amanhã.
– Leva o moço do caravanserai. Conhece bem os mercadores e não permitirá que te enganem.
– E, quanto ao itinerário, será melhor fazer a viagem pelo rio ou por terra?
– Pelo Nilo, Moumen, sem dúvida. Iremos primeiro pela costa até Rashid[76], o porto onde o rio desagua e aí tomaremos o barco para El-Qahira. Além de ser mais rápido, haveis de gostar do caminho pois é mui formoso.
– Trata de tudo, Ahmed – rogou Pêro da Covilhã que aprendera a confiar no mouro –, para podermos embarcar com as nossas mercadorias já na próxima semana.
Dentro da data aprazada, partiram numa barcaça de transporte de mercadorias para o porto de Rashid, na embocadura oriental do Nilo, onde fizeram o transbordo para um zambuco que, de velas desfraldadas, logo desferrou do cais e começou a deslizar pelas águas tumultuosas do rio em direcção à cidade do Cairo.
Pêro da Covilhã respirava com a brisa o perfume das acácias, atenuando um pouco o calor, cada vez mais intenso à medida que se aproximava a hora do meio-dia. Cruzavam-se com numerosos barcos de pescadores de tronco nu, manejando as cordas e as redes e junto dos povoados de casas de adobe, as mulheres lavavam as roupas nas pedras do rio, rindo e acenando um adeus. Os falsos mercadores viam os Ibis escarlates, com o seu voo lento e gracioso a recortar-se contra o azul intenso do céu, descendo nas margens do rio com um bater barulhento das longas asas cor de fogo e os olhos esverdeados dos crocodilos brilhando à superfície das águas como pequenos luzeiros anunciando um perigo de morte.
– Que maravilha! Que belo! – exclamavam os dois portugueses, olhando as margens, encantados com aquela imensidão verde e dourada.
– Em breve vereis melhor as dunas de areia a ondular, com o brilho da seda sob os raios de sol – Ahmed Said tinha alma de poeta e isso agradava a Pêro da Covilhã.
Mais adiante, surgiram uns edifícios de pedras muito grandes e todas lavradas. Estavam no meio de uns areais e em terra desabitada.
– Que pedraria é aquela? – perguntou Pêro da Covilhã sempre ávido de novidades.
– Segundo creio são celeiros do tempo dos Reis Faraós ou algumas das suas sepulturas. – Ahmed Said desculpou-se: – Sou de El-Iskandariya, não conheço lá muito bem as ruínas dos tempos antigos...
E finalmente ao entardecer chegaram ao porto, na margem oriental do Nilo, onde se alugavam liteiras, carroças, cavalos, camelos, burros e outros transportes para a cidade de El-Qahira, a uma légua de distância do porto, também chamada Mecera pelos mouros e onde se encontram as ruínas da cidade bíblica de Babilónia. Pêro da Covilhã fretou cavalos para os três e mulas com dois carregadores para as mercadorias e puseram-se a caminho para chegar ainda com a luz do dia ao caravanserai.
Em breve avistavam a cidade, cercada de altos muros de pedras lavradas, de cantaria muito antiga:
– É pouco maior que Évora! – exclamou Pêro da Covilhã que passara algum tempo naquela cidade durante uma das estadias de D. João II para fugir da peste em Lisboa.
– Mas repara na altura das casas – surpreendeu-se Afonso de Paiva, ao ver o casario. – A maior parte delas são de cinco ou seis sobrados.
E riu-se ao ver como os moradores dos pisos altos lançavam de cima, pelas janelas, um cordel com uma alcofa atada onde ia dinheiro do pagamento e os mercadores arrecadavam as moedas e punham no saco os seus produtos, logo içados para cima pelos clientes:
– Bem pensado! São cá dos meus, não gostam de se cansar!
– É uma cidade bem arruada e de ruas largas – comentou Pêro da Covilhã.
– É sobretudo uma cidade de muito trato – informou um dos carregadores. – Há suq de todo o tipo de mercadorias encerrados dentro de grandes caixarias, com as tendas para a rua e aposentos para os mercadores nas traseiras.
– Realmente cada bazar parece uma grande vila, são maiores e melhor resguardados do que em Fez – disse o Escudeiro cheio de admiração.
– Os suq aqui são tão grandes que, segundo se diz, quem não os conhece e lá entra não consegue acertar com a porta para sair – concluiu o carregador mais velho com um sorriso de orgulho na boca desdentada.
Por fim avistaram o caravanserai. O albergue era construído como um claustro de mosteiro, com uma grande sala feita em cruz, no meio da qual havia uma fonte com doze grossas bicas de latão que se abriam e fechavam; tinha ainda uma cozinha e latrinas comuns. Os claustros estavam divididos em cubículos e casinhas com porta e chave, debaixo de arcos em abóbada, para alojar os mercadores e viajantes. Em redor do caravanserai ficavam as estrebarias onde se podiam albergar cerca de mil cavalgaduras, com poços e cisternas para os animais. Pêro da Covilhã pagou o frete aos carregadores que levaram as montadas de regresso ao cais.
– Pelos vistos, os ricos aqui são mais generosos do que em Portugal! Que belas pousadas constroem para receberem os viajantes só por amor de Deus! – exclamou Afonso de Paiva, admirando a limpeza do lugar.
– Sim, é muito diferente na nossa terra e nas outras nações da Europa – concordou Pêro da Covilhã, lembrando-se das suas estadias em Espanha e França –, onde nos levam couro e cabelo, dão má comida e durante a noite, na sujidade das camas, nos comem os percevejos, as pulgas e os piolhos, enchendo-nos de enfermidades. E teremos muita sorte se não acordarmos com as bolsas ou as gargantas cortadas.
– Podeis pedir o comer – disse Ahmed depois de se informar dentro da pousada –, pois o mandam buscar fresco e barato.
– Deixaste as mercadorias dentro do armazém? E se nos roubam?
– Senhores, o que se mete destas portas adentro, ainda que seja ouro, não há-de faltar uma palha, porque para isso estão guardas de vigia tanto de noite como de dia e são obrigados a pagar qualquer cousa que falte, sendo também punidos com terríveis castigos.
Na grande sala acharam aposentadas já muitas gentes de diferentes nações, como persas, alarves, turcos, venezianos, gregos e judeus com todas as suas mercadorias agasalhadas.
Nessa noite, exaustos da longa viagem, Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva comeram uma refeição ligeira encomendada por Ahmed e foram dormir, deixando para o dia seguinte as conversas com os outros hóspedes e viajantes vindos do Oriente, a fim de poderem preparar um itinerário mais de acordo com os caminhos habituais das caravanas ou dos barcos do que com as rotas imaginadas pelos cartógrafos de D. João II.
E assim fizeram durante as três primeiras semanas da sua estadia no Cairo, a próspera capital do Egipto onde morava o sultão mameluco Qayt-Bey, a quem a Cristandade chamava Soldão da Babilónia e os seus súbditos davam o nome de Melik-el-Achraf, o Rei-muito-Nobre. Os dois portugueses, umas vezes sós outras acompanhados pelo fiel Ahmed Said, percorriam os magníficos bazares a fervilhar de actividade e perdiam-se no meio de uma multidão de mercadores e viajantes de quase todo o mundo.
– É aqui onde tudo começa – disse Pêro da Covilhã, num dos dias de passeio só com o companheiro no suq dos perfumes e bálsamos. – Ou tudo acaba.
– Que queres dizer com isso? – perguntou Afonso mirando à luz um pedaço de âmbar com um brilho de fogo aprisionado.
– É a esta cidade que vêm ter todas as riquezas do Oriente e onde findam os caminhos das suas caravanas, mas é também aqui que começa a nossa missão. Do Cairo partiremos ambos, eu à descoberta das rotas das especiarias e tu do mítico imperador cristão.
– Como iremos? E para onde?
– Já praticámos no caravanserai com muitos mercadores e viajantes vindos da Índia – disse Covilhã – e ficámos a saber que é melhor ir pela rota de Toro e de Adem.
– Vamos partir sozinhos? – perguntou Afonso de Paiva assustado.
– Não. Uns Mohtasseb, os chefes dos suq, disseram-me para ir em caravana e, segundo me informaram, todos os anos por esta altura, costuma partir daqui uma cáfila de mercadores e viajantes de Fez e Tremecem. Isso vinha mesmo a calhar, pois conheço bem os seus usos e língua e não teríamos dificuldades em nos juntarmos a eles.
– E como havemos de descobrir esses mogarabis[77]?
– Segundo parece, e por sorte nossa, o capitão da caravana fica sempre no caravanserai onde temos pousada. Vamos esperar ainda alguns dias a ver se aparecem, senão teremos de arranjar outra solução.
Ao chegarem ao caravanserai, nesse fim de tarde, notaram maior agitação na grande sala em cruz onde os mercadores muitas vezes se encontravam para fecharem os seus tratos. Num dos nichos reservados às mesas baixas, como no funduq de Fez, Pêro da Covilhã viu um grupo de Tuaregues, que se destacavam dos restantes hóspedes pelos seus belos albornozes azuis, os turbantes escuros a cobrir-lhes as cabeças e os tidjelmousts, os véus com que tapam todo o rosto, menos os olhos. A recordação de Filipa doeu-lhe como uma velha ferida novamente aberta.
Lembrou com saudade os seus amigos Khalid ibn Zohr, Rashid el-Beder e Abou al-Nasir, como haviam trabalhado com ele para salvar os portugueses cativos em Fez e depois lhes tinham servido de escolta até todos estarem a salvo. Quanto não daria para os ter ali consigo, correndo novamente à aventura e ao perigo!
Fez sinal a Afonso de Paiva e foram sentar-se não muito longe dos Guerreiros Azuis enquanto Ahmed Said ia encomendar algo de comer. Os Tuaregues falavam alto e animados e o Escudeiro podia ouvir bocados da sua prática, escutando com agrado os sons aspirados e guturais do seu linguajar.
– É um longo caminho! – dizia um deles. – Ir, assim com tantos cavalos, de Al-Qahira a As-Suwais[78], depois a el-Tūr e daí a Adem, naqueles barcos desmantelados, quantos animais vamos perder?
– Quedaremos alguns dias em Suakin, para os cavalos recuperarem as forças. Não os podíamos levar pelo deserto, nisso Mulay Abd-el-Aziz tem razão e é ele quem manda.
Pêro da Covilhã ergueu-se de um salto. Aquela voz... a menção a Mulay Belagegi, só podia ser...
– Khalid ibn Zohr! Como os meus olhos se alegram de te ver de novo.
O Tuaregue olhava, sem saber onde o vira, aquele alarve alto e magro, de longas barbas a dirigir-se-lhe com grandes saudações de amizade. Porém o seu companheiro mais moço gritou:
– É Ali Moumen, Khalid, como podes não o reconhecer?
– Abou, vejo que não te esqueceste dos amigos, como este traidor! – Pêro da Covilhã e Khalid abraçaram-se com a saudade de irmãos há muito afastados. Depois foi a vez do jovem e impetuoso Abou o beijar nas duas faces.
– Espero que te tenha sobrado alguma amizade para mim! – era Rashid a falar na sua voz calma de sempre, abrindo os braços ao seu amigo português.
– Que fazeis aqui? – perguntou o Escudeiro.
– Viemos preparar uma cáfila para levar os cavalos do Cheikh a vender a Adem. E tu?
– O mesmo. Vou para Adem ao serviço do meu senhor. E depois para a Índia.
O rosto de Khalid abriu-se num sorriso de alegria:
– Então irás connosco, pois como diz o ditado, Ar-rafyq qabla at-taryq!
– Sem dúvida – riu o português ao traduzir mentalmente o provérbio árabe “o companheiro antes da viagem”, pois numa caravana a vida do viajante dependia muitas vezes da ajuda dos companheiros. Com amigos destes, Pêro da Covilhã sabia que nada de mal lhe poderia acontecer.
[62] De um mastro. A vela latina era a vela triangular, própria das caravelas.
[63] Lado ou bordo do navio de onde sopra o vento.
[64] Nome dado pelos mouros a todos os europeus (francos), sobretudo aos portugueses.
[65] Corsários, piratas.
[66] O conjunto de remadores de um navio (o nome é de origem turca).
[67] Lado direito do navio, quando se está virado para a proa.
[68] Marinheiros.
[69] Superestrutura que se erguia acima do convés, pela alteração da borda do navio, e que se dividia em cabinas ou pequenos quartos para o Capitão e outros notáveis. A popa era a parte posterior da nau, caravela ou galeão.
[70] Escudo largo, do tamanho de um homem.
[71] Peças de artilharia que lançavam matérias incandescentes.
[72] Caravanserai (do persa Karvan-saraí), funduq, hospedaria gratuita para os mercadores das caravanas.
[73] Mercadorias.
[74] Governador.
[75] O Cairo.
[76] Roseta.
[77] Magrebinos, do Magreb (Marrocos).
[78] Suez.